TEXTO I

Rap: uma linguagem dos guetos

Entre as vozes que se cruzam na cacofonia urbana da sociedade globalizada, há uma que se sobressai pela sua radicalidade marginal: o rap. A moderna tradição negra dos guetos norte-americanos é, hoje, cantada pelos jovens das periferias de todos os quadrantes do globo. Mas diferentemente das estereotipias produzidas pela nação hegemônica e difundidas em escala planetária, a cultura hip-hop costuma ser assimilada como uma fala histórica essencialmente crítica por uma juventude com tão escassas vias de fuga ao sempre igual. Quando, por exemplo, jovens de uma favela brasileira incorporam esta linguagem tornada universal, por mais que a sua realidade seja diferente daquela dos marginalizados do país de origem, a forma permanece associada a um conteúdo crítico – uma visão de mundo subalterna e frequentemente subversiva. O rap é hoje uma forma de expressão comunitária, por meio da qual se comunicam e afirmam sua identidade habitantes dos morros e comunidades populares. /.../ O surgimento do movimento hip-hop nos remete ao contexto no qual estavam inseridos os Estados Unidos dos anos 60 e 70, no auge da Guerra Fria. Foram anos de tensão e muita agitação política. O descontentamento popular com a guerra do Vietnã somava-se à pressão das comunidades negras segregadas, submetidas a leis similares às do apartheid sul-africano. O clima de revolta e inconformismo tomava conta dos guetos negros. /.../ Na trilha da agitação política ocorriam inovações culturais. Nos guetos, o que se ouvia era o soul, que foi importante para a organização e conscientização daquela população. /.../ No mesmo período surge uma variedade de outros ritmos, como o funk, marcados por pancadas poderosas que causavam estranhamento aos brancos, letras que invocavam a valorização da cultura negra e denunciavam as condições às quais eram submetidas as populações dos guetos. O soul e o funk foram as bases musicais que permitiram o surgimento do rap, que virá a ser um dos elementos do movimento hip-hop. Por essa época ou um pouco antes, jovens negros já dançavam [o break] nas ruas ao som do soul e do funk de uma forma inovadora, executando passos que lembravam ao mesmo tempo uma luta e os movimentos de um robô. /.../ Finalmente, além da música e da dança, propagava-se pelos guetos, ainda, o hábito de desenhar e escrever em muros e paredes. /.../ Nesse contexto de efervescência político-cultural, grafiteiros, breakers e rappers começaram a se reunir para realizar eventos juntos, afinal suas artes estavam relacionadas a uma experiência comum, a cultura de rua. /.../ Por volta de 1982, o rap chegou ao Brasil, fixando-se, sobretudo, em São Paulo. /.../ Nos últimos anos da década de 90, o rap brasileiro ultrapassou os limites da periferia dos grandes centros e chegou à classe média. /.../ O rap de caráter mais comercial passou então a ser amplamente difundido pelo país, ao mesmo tempo em que, em sua forma marginal, a linguagem continuava a se desenvolver nos espaços populares. Há que se destacar o caráter inovador do rap nacional, que reelabora, de forma criadora, a partir de tradições populares brasileiras, a linguagem dos guetos norte-americanos, mesclando o ritmo do Bronx a gêneros como o samba e a embolada. 70 75 80 /.../ Não se trata, no entanto, de idealizar o hip-hop como forma de conhecimento. O movimento, seguramente, não é homogêneo: possui tendências mais ou menos politizadas, mais ou menos engajadas e críticas. Há, por assim dizer, uma vertente cuja tônica é a denúncia, a agitação e o protesto. Outra, espontânea, sem uma linha política coerente e definida. E outra ainda, talvez hegemônica, já assimilada pelo mercado, que reproduz o modelo de comportamento, aspirações e ideais dominantes (consumismo, individualismo e exaltação da vida privada), como a maioria das canções ditas "de massa".

(COUTINHO, Eduardo Granja, ARAÚJO, Marianna. Rap: uma linguagem dos guetos. In: PAIVA, Raquel, TUZZO, Simone Antoniaci (Orgs.). Comunidade, mídia e cidade: possibilidades comunitárias na cidade hoje. Goiânia: FIC/UFG, 2014.) 

 

TEXTO II

A Marselhesa do subúrbio

(Sérgio Martins)

Tchudum, tchá, tchá, tchá, tchá, tchudum, tchá, tchá, tchá, tchá, tchudum\ São 2 horas da manhã numa casa noturna de São Paulo e os frequentadores estão dançando uma batida eletrônica repetitiva. Dali a uma hora e meia, MC Guimê, o principal nome do funk ostentação, fará seu show, acompanhado de um DJ e de duas dançarinas, e com a participação especial do rapper Emicida. /.../ Encontram-se ali jovens de bairros suburbanos – os meninos com correntes douradas, as meninas com saia bem curtinha, e todos com roupas de grife – e também os chamados “playboys”. Quando Guimê finalmente sobe ao palco, a temperatura da casa parece subir. Por quarenta minutos, ele intercala canções de seu repertório com sucessos de outros funkeiros, canta o rap do quarteto Racionais MC’s e cita o Salmo 23 (“O senhor é meu pastor / Nada me faltará”). Nada falta mesmo: suas letras carregam uma tal profusão de marcas – carros, roupas, perfumes, bebidas – que até se poderia suspeitar de vultosos contratos de merchandising. Não é o caso. Para Guimê, natural da periferia de Osasco, cidade da Grande São Paulo, falar desses objetos de consumo – e, acima de tudo, adquirilos – é uma aspiração realizada, uma senha para a entrada na sociedade. O público não só entende como compartilha o sonho de Guimê: muitos fãs, no meio da dança, erguem garrafas de uísque escocês como se fossem troféus. Festas e shows assim se repetem por outras cidades e clubes. Como tantos gêneros musicais que vieram das áreas urbanas mais pobres, o funk já conquistou parte da classe média. Mas é sobretudo entre a garotada da periferia que ele tem a ressonância de uma Marselhesa: um hino de cidadania e identidade para os jovens das classes C, D e E. /.../

(Revista Veja, 29 de janeiro de 2014, p. 73 e 74)