Luta contra uma grave epidemia, guerra entre informações verdadeiras e falsas, negacionismo e uma população desconfiada de uma simples picada no braço. O ano parece ser 2020, mas estamos falando de 1904, data em que ocorreu a Revolta da Vacina. O motim popular do início do século passado teve como estopim a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola. 116 anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o assunto, com o julgamento sobre a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19.
“O mote daquela época foi a vacinação forçada, quando os agentes invadiam as casas para obrigarem as pessoas a se vacinar, mas existiam também outras questões políticas, como a ideia de depor o governo, o tratamento dado aos pobres, além da reforma urbana, com uma tentativa de modernizar a cidade do Rio de Janeiro”, explica a professora Márcia Regina Barros da Silva, do Departamento de História da USP (Universidade de São Paulo).
A vacinação era feita pela brigada sanitária, quando os profissionais entravam na casa das pessoas e vacinavam à força todos que lá estivessem. A população reagiu: 30 pessoas morreram, 110 ficaram feridas e quase mil foram presos, em meio a casas apedrejadas, bondes tombados, fios de iluminação pública cortados, barricadas.
Outra diferença entre 1904 e 2020 está no grupo que apoia a ciência e os que são antivacina. “Tínhamos um presidente que era pró-vacina e intelectuais que desacreditavam no imunizante”, resume a médica sanitarista e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Lígia Bahia. Para ela, o motim de 1904 deixou lições importantes, como o envolvimento da população nas ações de saúde pública e a eficácia das vacinas na longevidade humana. “Uma revolta como aquela não deve acontecer novamente. O que a gente pode ter hoje é uma revolta pela vacina e não contra ela.”
Tanto que mais de 70% dos brasileiros afirmam que vão participar da vacinação contra a Covid-19. Mas esse número vem caindo e entre as razões está a disseminação das fake News, também presente no movimento do século passado. À época, a população acreditava que a vacina era uma forma de controle do governo e matava as camadas mais pobres da sociedade.
“Toma a vacina quem quiser. Isso é liberdade”, escreveu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL) em 2 de setembro de 2020. O Brasil registrava uma morte por coronavírus a cada 73 segundos, e cientistas corriam contra o relógio para produzir uma imunização segura e eficaz.
Na mesma postagem, em sua conta no Twitter, o filho do presidente citou a Revolta da Vacina, ocorrida no Rio de Janeiro durante a República Velha.
Alvo de chacota por evocar um motim ocorrido há 116 anos, o deputado Bolsonaro reedita um discurso anticientífico e antivacina em plena pandemia de covid-19. A mesma narrativa é ecoada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e parte de seus apoiadores, contrários a qualquer medida de isolamento para prevenção da doença.
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“Naquela época, a vacina era uma coisa extremamente nova. Mesmo a descoberta dos microrganismos [como causadores de doenças] por [Louis] Pasteur era muito recente”, pondera Flávio Fernando Batista Moutinho, professor adjunto do Departamento de Saúde Coletiva Veterinária e Saúde Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Hoje a ciência tem tudo isso consolidado, e ainda assim há um movimento de negacionismo e revisionismo", ressalta.
A apropriação da insatisfação popular com as medidas sanitárias para fins políticos é um dos aspectos em que há correlação entre a Revolta da Vacina e a atual pandemia. Em 1904, setores políticos de oposição, especialmente monarquistas depostos pelo novo regime e militares positivistas, viram uma oportunidade de articular um golpe de Estado – que fracassou.
“A pandemia de covid-19 também está sendo usada politicamente. Uns contra, uns a favor de certas medidas sanitárias, mas cada um puxando para o seu lado, aproveitando certa insatisfação social para seus interesses”, afirma Moutinho.