De acordo com o conhecimento de mundo adquirido ao longo de sua jornada acadêmica, redija um texto dissertativo-argumentativo sobre o seguinte tema: "O show do eu: a intimidade como espetáculo nas redes sociais"
O Show do Eu: a intimidade como espetáculo
http://dx.doi.org/10.20396/rua.v22i2.8647953
Mariana Marques de Lima[1]
Em “O Show do Eu: a intimidade como espetáculo”, obra gestada a partir da pesquisa de doutorado da argentina Paula Sibilia, são apresentados aspectos sociais e históricos do incessante comportamento de mostrar a intimidade nas redes sociais. O ensaio é um daqueles textos tão atuais que, independente da área acadêmica, se faz necessário devido a sua imediaticidade crítica e exposição dos hábitos assentados que permeiam o dia a dia. Em conversa constante com Guy Debord, no célebre “A Sociedade do Espetáculo”, a autora complementa as teses cunhadas em 1967, levando-as a um novo patamar ao apontar os processos entre o século XX e XXI que alavancaram as condutas de espetacularização do espaço íntimo.
Partindo dos blogs, passando pelas demais redes sociais que inundam o ciberespaço, a autora busca compreender o advento das subjetividades transfiguradas no ato de postar a intimidade, partindo da hipótese de uma mudança histórica ainda em andamento. Desse modo, Sibilia inicia o ensaio com questionamentos fazem fundamentais, explicitando casos que nem necessitariam de tantas elucidações por terem se tornado óbvios e corriqueiros. Entre eles, a autora pergunta o porquê de tanta exposição acontecer no presente, se a razão seria um surto de megalomania estimulada pela sociedade ou um compartilhamento desenfreado provocado por um sentimento de humildade exacerbada? Os questionamentos são variados e circundam a obra nos oitos capítulos apresentados, consistindo, cada qual, em um “Eu” a ser desenvolvido.
O livro de Sibilia traz reflexões sobre nossa sociedade, altamente tecnológica, que já lida com certa naturalidade com fenômenos tais como as selfies em Instagram, os vídeos em Youtube, os posts em Facebook e em blogs. As reflexões que dão a tônica do texto transcorrem sobre a transformação da subjetividade e da identidade, no intento de discutir o que se busca exibir nas redes, a criação de modos de ser, e a construção de si. As evidências desse exacerbado desempenho compartilhado em rede, leva à análise das transformações históricas desse sujeito, buscando a compreensão de tais práticas e da mutação das subjetividades desses indivíduos. Nessa genealogia, a autora discorre desde os diários íntimos, as trocas epistolares - passando pela literatura, com a ascensão dos romances, e aterrissa no advento da psicanálise.
Em um primeiro momento, Sibilia nos orienta para o entendimento da exibição da intimidade por meio de dois autores chave que vão tangenciando as dimensões abordadas no ensaio ao destacar o contexto e as articulações desse novo regime de poder, são eles Michel Foucault e Gilles Deleuze. O primeiro pelo entendimento dos mecanismos de disciplinamento operacionalizados nas sociedades industriais, com a criação de instituições responsáveis pela criação de corpos “dóceis e úteis” (p. 28), visando à eficácia do projeto do capitalismo industrial. Já o segundo, por meio da expressão “sociedade de controle”, preconizando uma “organização social capaz de fertilizar o capitalismo mais ágil e voraz da atualidade, que se caracteriza pela superprodução e pelo consumo exacerbado no qual vigoram os serviços e os fluxos de finanças globais” (p. 28). Essa abordagem se faz necessária ao se mapear esse panorama que ainda está em construção, os regimes de poder inerentes que atravessam o novo regime de poder.
A autora avança com a oferta de um mosaico de exemplos que propiciam indagação de até que ponto esses comportamentos já foram naturalizados entre nós. Uma performance de si trabalhada com destreza na rotina diária do usuário, esforço para se mostrar em rede e também a ansiedade sobre os likes ou curtidas, mostram, tal como aponta a ensaísta, para o cultivo de práticas diárias de exposição, que consistem em horários específicos para as postagens que irão favorecer o crescimento no número de curtidas; criação de contas falsas, e apelo a aplicativos que possibilitem uma troca de likes efetiva. A implementação dessas práticas no ato de postar corrobora a clara preocupação na repercussão e na popularidade em detrimento do conteúdo abordado.
Em meio aos variados aspectos apontados pela autora que sublinham as características primais do comportamento em rede atual, encontra-se a abordagem do fenômeno “extimidade”, que surge como a grande contribuição aos estudos que vêm sendo realizados no âmbito da tríade corpo, subjetividade e tecnologias, tópicos interligados por Sibilia. O conceito do termo recai para a transmutação entre intimidade e exterioridade, portanto, ao juntá-los tem-se “extimidade”, que nas palavras da autora consiste em “uma entidade para cuja configuração foi necessário deslocar o eixo das subjetividades: do magma causal da interioridade psicológica para a capacidade de produzir efeitos no olhar alheio” (p.163). Ao longo do texto, vai-se imbricando o termo nos contextos históricos estudados, enfatizando a passagem do “homo psico-lógico da sociedade industrial para um certo homo tecno-lógico do capitalismo informatizado” (p.163).
No intento de esmiuçar o hábito contemporâneo de exibição da intimidade, Sibilia traz a contribuição histórica sobre esse “Eu narrador” que tanto pululam em redes. Os blogs, grandes propulsores desse movimento, contribuíram para que as narrativas de vidas, produções em primeira pessoa, irrompessem na web com diversos relatos nem sempre verdadeiros, tal como mencionado:
Uma consideração habitual quando se examinam esses costumes ainda estranhos – embora já não tão novos assim – é que os sujeitos neles envolvidos ‘mentem’ ao narrar suas vidas na web. Aproveitando vantagens como os diversos graus de anonimato e a facilidade de recursos que oferecem as mídias interativas, por exemplo, os habitantes desses espaços montariam espetáculos de si mesmos para exibir uma intimidade inventada. Seus testemunham seriam, a rigor, falsos ou hipócritas: em suma, não autênticos. Ou seja, enganosas autoficções, meras mentiras que se fazem passar por pretensas realidades, ou então relatos não-fictícios que preferem explorar as ambiguidades entre um e outro campo. (SIBILIA, 2016, p. 55 – 56)
No entanto, a autora faz a ressalva de que a prática de relatar sobre sua própria vida não é algo tão novo, conduta já vista na alcunha do gênero autobiográfico, categoria artística fortemente abrangida e observada em formatos como diários íntimos, memórias, álbuns e autobiografias. Com o boom dos livros escritos por youtubers percebermos a influência do gênero autobiográfico na incessante busca de relatar, em sua maioria, sobre suas vidas enquanto personalidades da web e as variadas causas que os levaram a esse patamar. Desse modo, conforme a autora, em sua interpretação do “pacto de leitura” (p.57) de Phelippe Lejeune (1975), as obras que, em seu caráter são autobiográficas, divergem das demais ao firmarem com o leitor esse acordo, que versa na crença de que o autor, narrador e personagem são a mesma pessoa, portanto essa obra se caracteriza como autobiográfica. Os testemunhos da própria vida na internet, nesse sentido, seriam novas formas de se autobiografar, tendo em vista que obedecem à tríade trabalhada por Lejeune em seu pacto.
Como aludido, as biografias de celebridades e youtubers que se fazem constantes nas prateleiras de livrarias e enaltecidas em bienais de livros, só contribuem para o que Sibila denomina de uma “intensa fome de realidade” (p.61) sobre vidas alheias; um claro deslocamento das noções de público e privado, desembocando no obscurecimento das linhas divisórias entre um e outro no que se é postado. Trazendo a conjectura de que esses textos eletrônicos instauram novos hábitos e práticas, todavia, a escrita de si, segundo a autora, sempre vem exacerbada de uma potência “aurática”, tida como verdadeira e que ainda está remanescente nesses “escritos éxtimos” (p.66).
Adentrando na construção desse “Eu atual”, Sibilia detalha os eixos dessas subjetividades modernas, nas quais há um distanciamento do lugar interior, para a ostentação do eu exterior. Essa transformação comentada exibe a diferença entre o olhar de dentro, necessário para a escrita dos diários e autobiografias, para um olhar que vem de fora, em outras palavras, a exibição do interior ao olhar de outrem. Nesta argumentação, Sibilia exibe a maneira como opera a questão do tempo na performance desse “eu” - que instaura a “extimidade” referida. Por conseguinte, reforçando o termo supra-citado na obra, a “extimidade” foi a denominação cunhada pela autora ao se referir ao fenômeno de postagem de si na internet. Já que, ao mostrar algo de si nas redes, deixa de ser íntimo, e passa a ser éxtimo.
Sibilia faz uso das metáforas de Roma e Pompéia, procedentes de Sigmund Freud, para a compressão de sua “arqueologia do eu” (p.157). Roma seria uma cidade em ruínas, com estilhaços do passado, que mesmos separados podem representar um sentido no futuro; Pompéia, por sua vez, é a cidade petrificada, assim como uma imagem que foi eternizada, um momento único que foi congelado, ou seja, uma fotografia. Conforme sua explicitação, que ao longo do texto vai sendo retomada nas demonstrações dos exemplos, vê-se na utilização das metáforas que no caso de Roma, as múltiplas camadas que ficam adormecidas nos recônditos da mente, podem, em um dado momento, se tornar latentes; em Pompéia, a imagem se cristaliza, “preservada em um momento singular” (p. 158).
A ficcionalização da vida cotidiana permitida pelos recursos midiáticos evidencia esse anseio pelo real, mesmo ele não sendo tão verídico quanto pareça. Os recursos de verossimilhança fluíram dos meios tradicionais, como os livros, para o cinema e a televisão, ocasionando em uma contaminação do que é ficcional e do que é real. Porém, como alerta Sibilia, hoje, impera a primazia da não-ficção, portanto, criou-se uma transmutação do que antes era uma ficção aos moldes realistas, para uma realidade ficcionada. A partir disso, a autora enfatiza, “espetacularizar o eu consiste precisamente nisso: transformar as nossas personalidades e vidas (já nem tão) privadas em realidades ficionalizadas com recursos midiáticos. É isso que se procura fazer ao performar a própria extimidade nas telas cada vez mais onipresentes e interconectadas” (p. 249).
Uma das críticas intrínsecas na obra recai para a vida baseada nas aparências, não mais o “ser” ou “ter”, mas o “parecer”; uma subjetividade composta no que é visto, eternizado nas redes sociais, com os vídeos e fotos. Essa nova forma de ser e estar no mundo, lamenta autora, deve-se ao processo de intensa espetacularização e a transformação de tudo em mercadorias, em que há o crescimento de um emaranhado de vozes sem nada a dizer, no sentido de contribuição sólida; e vai se consolidando em uma sensível gestão de si, um brand do eu.
Por fim, Sibilia assegura que a finalidade do ensaio é a argumentação dos fatores que nos fizeram chegar a essa dinâmica na qual estamos inseridos, tendo em vista todos os processos históricos trabalhados na obra, imbricados com exemplos que sublinham essa experiência intensificada do real no ciberespaço. Indubitavelmente, a autora traça essa arqueologia do saber chamando a atenção para os processos de espetacularização e os dispositivos que os tornaram possíveis. A esfera híbrida, resultado do embaralhamento entre público e privado, força as subjetividades a virarem uma moeda de troca, portanto, uma mercadoria nesse cenário histórico atual. O que leva a autora a considerar, em sua conclusão, que a resistência a essa hiperexposição seria o silêncio, uma dieta das redes sociais, sendo essa a solução para se criar novas formas de ser e estar no mundo.
A obra de Paula Sibilia traz uma contribuição aos maios variados campos do saber em sua exploração do cenário conectado atual. Onde impera uma onda narcisista, a transparência com que os processos foram especificados e alertados ressalta a importância desse debate na atualidade. Em meio à atualidade e abrangência do assunto tratado, fica difícil não pensar em alguém que se encaixe aos moldes traçados; ou até mesmo se identificar neles. Nada é mais desconcertante do que ver a si próprio esmiuçado nas 356 páginas desse ensaio.
Referências
DEBORD, Guy.La sociedad del espetáculo.Buenos Aire: La Marca, 1995 (Edição brasileira: A sociedade do espetáculo.Rio de janeiro: Contraponto, 2007)
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
SIBILIA, Paula. O Show do Eu: A intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2016.
Fonte: labeurb.unicamp.br/rua/secaoresenha/pagina/7-resenha